A Comissão de Combate às Discriminações e Preconceitos de Raça, Cor, Etnia, Religião e Procedência Nacional pretende se reunir com o secretário de Polícia Civil, delegado Allan Turnowski, para tratar da capacitação dos policiais para atendimento e registro dos casos de injuria e intolerância. Durante a audiência pública, desta segunda-feira (23/11), que durou mais de quatro horas, deputados e autoridades ouviram vítimas de crimes de intolerância e debateram mais de 15 propostas para enfrentar essa questão.
“Foi um debate muito produtivo. Temos propostas completas que vamos levar adiante. Vamos buscar com o secretário Allan Turnowski promover uma integração para tentarmos seguir os protocolos já implantados em São Paulo para registro dos crimes com motivação de LGBTfobia”, afirmou o presidente da comissão, deputado Carlos Minc (PSB).
Maria Eduarda, integrante do Grupo Pela Vidda, cobrou uma unificação da forma de registro dos crimes de intolerância e racismo em todas as delegacias. “A maioria das vítimas de LGBTfobia não estão conseguindo registrar corretamente a ocorrência, com a tipificação adequada, nas outras delegacias que não a Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância). Falta preparo dos policiais”, concluiu.
Integrante do Grupo Arco Iris, Cláudio Nascimento pontuou a dificuldade em reunir dados sobre crimes envolvendo a LGBTfobia. “Estamos tentando reunir os dados, mas encontramos grandes dificuldades, principalmente por conta do problema inicial do registro. Em São Paulo, isso já está mais avançado”.
A coordenadora do Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos da Defensoria Pública, Letícia Furtado, disse que tem crescido o número de casos de LGBTfobia: “Temos recebido muitas denúncias de que os casos não estão sendo bem atendidos nas delegacias do estado”.
Racismo
Participante do debate , o professor Alexandre de Jesus Silva contou ter sido vítima de racismo praticado por guardas municipais em uma blitz de organização do transito durante o Rock in Rio. Alexandre é morador do entorno da cidade do rock e tinha feito todo o cadastro da prefeitura para ter livre acesso ao seu condomínio. “Mesmo com o adesivo de morador no local indicado, o guarda não acreditou que eu seria morador da Barra da Tijuca. Sem pedir autorização, ele retirou o adesivo do meu carro dizendo que ia verificar se era verdadeiro porque pessoas como eu tem facilidade em fazer falsificação. Quando saí do carro, ele disse para eu parar de fazer macaquice. Pedi o nome e a matrícula e ele me deu dados falsos. Tive dificuldade em registrar a ocorrência na delegacia. E só consegui com ajuda da Comissão de Combate às Discriminações da Alerj. Falar sobre esse assunto dói, mas preciso me posicionar”, salientou.
Clatia Vieira, do Fórum Estadual de Mulheres Negras e do Fórum de Diálogos das Mulheres Negras da Alerj, lembrou casos emblemáticos de racismo e ressaltou que as violações e os episódios de intolerâncias são principalmente pela cor da pele. “Nossa luta pela sobrevivência não se dá em 2020. Temos que voltar em 2013 para lembrar Amarildo e Cláudia. Hoje em dia, o racismo estrutural não faz nem questão de ser velado”, comentou.
Intolerância religiosa
O presidente do Fórum Municipal de Religiões Afro-Brasileira de Campos dos Goytacazes, Gilberto Firmino Junior, o Totinho, fez um relato histórico dos casos de intolerância religiosa na cidade. De acordo com ele, desde 2012 a cidade criou o fórum para amparar os filhos de santo que perderam as suas casas e foram vítimas de intolerância. Essas famílias foram incluídas em programas de assistência social da prefeitura da cidade em um acordo fechado em parceria com o Ministério Público. “Precisamos de políticas públicas para garantir o nosso direito de professarmos nossa fé. Em Campos, não podemos vestir “roupa de santo” em vários bairros, por ameaças e atentados praticados pelo tráfico de drogas. As casas estão sendo fechadas e as que funcionam têm que respeitar o horário que os traficantes definem”, relatou.
O babalorixá Ivanir Santos, interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, defendeu a união como forma de combate ao preconceito e a intolerância religiosa, além do fortalecimento da Decradi. “Temos que fortalecer a delegacia que foi uma conquista e ampliar o número de agentes para que as investigações avancem. E que seja possível produzir estáticas sobre os casos. Porque raramente as denúncias chegam à apreciação do judiciário”, disse.
Gilbert Stivanello, que era titular da Decradi e hoje está na subsecretária de Planejamento e Integração Operacional da Polícia Civil, disse que desde a criação da Decradi (em dezembro de 2018) dos 400 procedimentos registrados, cerca de 300 foram concluídos e encaminhados à Justiça. “Percebi sim alguma deficiência no preenchimento de campos da motivação presumida do crime por parte de alguns policiais. Mas lembro que, às vezes, a tipificação não acontece no momento do registro e sim ao longo da apuração. Outra dificuldade legal que enfrentamos é no combate a crimes relativos à orientação sexual. O artigo 140 do Código de Processo Civil não abrange crimes por orientação sexual. Por isso, os casos são tratados como injúria simples, recebendo tratamento mais brando. E não ficamos felizes com isso”, observou.
A atual delegada titular da Decradi, Marcia Noeli, destacou a importância da divulgação dos trabalhos da delegacia: “Muita gente nem sabe que a delegacia existe. Precisamos dar visibilidade aos nossos trabalhos. Já entrei em contato com a diretora da Academia de Polícia para montarmos seminários de capacitação para os policiais sobre esses temas e ela foi muito sensível”.
Mulheres: maiores vítimas
O Instituto de Segurança Pública (ISP) recém-divulgou o primeiro Dossiê de Crimes Raciais que aponta que pelo menos duas pessoas são vítimas de racismo por dia no estado. E de acordo com Jonas Pacheco, analista do ISP, esse número pode ser ainda maior já que os casos podem ser subnotificados. “Analisamos mais de três mil ocorrências policiais relacionadas a racismo nos anos de 2018 e 2019. As mulheres são as que mais sofrem. Quase 60% dos registros de ocorrência são de crimes de racismo contra elas”, esclareceu.
Integrante do debate, as deputadas Martha Rocha (PDT), Renata Souza (Psol), Dani Monteiro (Psol), Monica Francisco (Psol) fizeram sugestões para tentar atender às demandas levantadas a partir dos depoimentos apresentados na audiência. A primeira foi a cobrança do cumprimento da Lei 11.645, de 2008, que trata da obrigatoriedade da história e culturas afro-brasileira e indígena no currículo escolar. “No campo da Educação, fundamental para mudança de paradigma, sugiro aproveitar a oportunidade de novo secretário estadual de Educação e das eleições municipais para iniciar o ano de 2021 com o cumprimento dessa lei”, comentou Martha Rocha.
Outra sugestão de Martha foi em relação a formação dos policiais para atendimento e registro dos crimes de intolerância. “Devemos aproveitar a possível realização de concurso público para Polícia Civil para incluir o tema da intolerância e do correto atendimento na formação dos policiais”. A deputada sugeriu ainda a criação de núcleos de atendimentos regionais a exemplo dos núcleos de atendimento à mulher. “Dada à gravidade da situação em Campos, relatada na audiência, podemos pedir a criação de um núcleo de atendimento na região até como experiência para ser levada as demais regiões do estado”, acrescentou a parlamentar.
A deputada Mônica Francisco (Psol) ressaltou que o caso de Campos precisa ser tratado com urgência. A última sugestão foi a apresentação de um projeto de lei com a exigência da criação de um dossiê específico para os casos de intolerância nos moldes do Dossiê Mulher. Todas as sugestões foram acatadas pelo deputado Minc, presidente da comissão.
Também participaram da reunião Paulo Maltz, presidente do Conselho Estadual de Defesa e Promoção da Liberdade Religiosa; Juliana Antunes, da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil–RJ; e Alessandra Ramos, da Aliança LGBTI.